COMO ENTENDER PYONGYANG?
Desenvolver a economia e o Exército, esse é o objetivo oficial de Kim Jong-un, no comando da República Democrática Popular da Coreia desde dezembro de 2011. Por ora, ele multiplica provocações, enquanto manobras militares de Seul e Washington na costa norte-coreana atiçam as tensões
Mais uma vez, a República Democrática Popular da Coreia (RDPC) deixa o resto do mundo sem fôlego: onda de ameaças – ataques nucleares aos Estados Unidos, rejeição do armistício de 1953, uma inevitável “Segunda Guerra da Coreia” – e baterias de mísseis apontados para o Japão e para a base norte-americana de Guam. Desde meados de março, a propaganda norte-coreana intensificou-se, e os meios de comunicação internacionais, ao difundir com complacência esses arroubos belicosos sem medir quais são realmente as ameaças verossímeis, propiciaram que essa propaganda ecoasse de forma desmedida, para a grande satisfação da capital Pyongyang.
Depois da frequente confrontação de George W. Bush, os Estados Unidos voltaram a apostar em uma estratégia mais contida com Barack Obama. Mas é necessário reconhecer o fracasso dessa política, assim como a do presidente sul-coreano Lee Myung-bak, que até fevereiro pensava exercer algum poder sobre Pyongyang. A situação tornou-se infinitamente mais complexa do que há quinze anos.
Sem dúvida, os objetivos da Coreia do Norte não são os mesmos de 1998, quando lançou um míssil equipado com satélite (mesma tecnologia de um míssil de longo alcance) contra o Japão, que caiu no Pacífico. A administração Clinton recuou com sua política e, em outubro de 2000, a secretária de Estado Madeleine Albright visitou Pyongyang. Na ocasião, chegou-se a cogitar uma visita do próprio presidente. Contudo, Bush varreu as iniciativas de seu predecessor.
Desde então, a RDPC realizou três testes atômicos, em 2006, 2009 e 2013, e se proclama uma potência nuclear. Dispõe de estoques de plutônio e de um programa de enriquecimento de urânio de capacidades balísticas. Na reunião do Comitê Central do Partido dos Trabalhadores, em 31 de março, Kim Jong-un precisou: “As armas nucleares não são uma moeda de troca para obter dólares. A RDPC não renunciará jamais [ao desenvolvimento de tais armas] enquanto persistir a ameaça nuclear dos imperialistas”. Assim, Pyongyang elevou a barreira para futuras negociações.
Aos 30 anos, Kim Jong-un, segundo herdeiro do clã dos Kim, levado à liderança do regime após a morte de seu pai, Kim Jong-il, em dezembro de 2011, parecia conferir uma imagem mais amena ao país – que mantém cerca de 200 mil prisioneiros em campos de trabalho, segundo organizações humanitárias. Um ano após ter ganhado plenos poderes (primeiro secretário-geral do Partido dos Trabalhadores, primeiro presidente da Comissão Nacional de Defesa, marechal e comandante-chefe do Exército Popular), no entanto, ele desencadeou uma ofensiva de rara virulência, com o lançamento de um satélite em dezembro e um teste nuclear em fevereiro, ambos condenados pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.
Jong-un estudou durante cinco anos em um liceu na Suíça e por essa experiência no exterior sem dúvida se tornou mais consciente do que a velha geração sobre a necessidade de reformas. Contudo, permanece fiel à via traçada desde a década de 1990: “um país forte e próspero”, fórmula que busca conciliar desenvolvimento e força militar. Com algumas nuances lexicais, a mesma fórmula foi, no século XIX, a ambição do Japão na era Meiji (“país rico, Exército forte”) perante a ameaça estrangeira. Na Coreia do Norte, os dois objetivos são dificilmente conciliáveis: a “prosperidade” supõe reformas, mas em particular a abertura e o auxílio estrangeiro, sob a forma de assistência tecnológica e investimentos. Os Estados Unidos e seus aliados, nesse contexto, se recusam a cooperar com Pyongyang enquanto a capital representar uma ameaça.
Ao tomar a linha de frente, o regime norte-coreano abalou o status quo: colocou em discussão a “paciência estratégica” de Washington, reforçou as sanções internacionais que estrangulam o país e agudizou seu isolamento até em relação à China, que, apesar de ajudar o país economicamente, engrossa o coro das condenações internacionais. Ao desafiar os Estados Unidos e seus aliados, o terceiro teste nuclear representa também uma afirmação de soberania com relação a Pequim.
Ao dispor de uma força de dissuasão, a RDPC se considera protegida de um ataque nuclear – ameaça de Washington pelo menos em cinco ocasiões. Dessa forma, o governo passou a justificar seu regime e os sacrifícios pela necessidade de tornar o país invulnerável e garantir a independência como um objetivo sagrado, e por isso tem amplo respaldo da população. Portanto, uma renúncia a essa arma – única conquista da era Kim Jong-il – parece improvável.
A obstinação da RDPC em se fazer reconhecer como potência nuclear pelo resto do mundo e sua aparente recusa diante de qualquer transição pós-totalitária se baseiam em um nacionalismo exacerbado. Esse aspecto do país se inscreve menos na história da bipolaridade – que desapareceu com o desmoronamento do bloco soviético – do que na do pós-colonialismo.
Na Europa, a Guerra Fria foi, na realidade, uma época de paz. Na Ásia, na península coreana e no Vietnã, foi um período de enfrentamentos armados vividos como prolongamentos das guerras de libertação. Na RDPC, a propaganda reaviva a memória sublimada da “gloriosa luta” dos partidários reunidos atrás de Kim Il-sung contra a ocupação japonesa – fundamento da legitimidade do regime − e localiza sistematicamente a situação atual no contexto da luta contra o imperialismo.
Após o fim da URSS, os temas recorrentes do pós-colonialismo – independência, soberania nacional, solicitações de reconhecimento – ressurgiram com força, acentuando no seio da população uma mentalidade de país permanentemente invadido. Ao fazer a Coreia do Norte figurar no considerado “eixo do mal”, e em seguida atacando o Iraque, Bush reforçou esse sentimento de ameaça. Atual potência nuclear, a RDPC jamais terá o mesmo destino do Iraque, martela a propaganda.
De qualquer forma, a situação geopolítica é diferente: a proximidade do país com a China impossibilita uma intervenção militar. Pequim, de fato, pretende evitar qualquer instabilidade que possa levar a uma reunificação da península “à força”, sob o comando do Sul, com o apoio das Forças Armadas norte-americanas em sua fronteira. Em caso de guerra, a RDPC certamente perderá, mas não sem causar terríveis estragos ao Sul, sem mencionar ao Japão. E, nesse caos, o que aconteceria com as armas nucleares ou os estoques de plutônio dos quais dispõe? Esse risco deveria ser suficiente para incitar outra forma de abordagem do problema que recorrer a sanções e boicotes.
Philippe Pons.
1 de maio de 2013
Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1408>
1 de maio de 2013
Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1408>