Releitura da música “Marvin” (Titãs)
Nasci e cresci no Nordeste brasileiro. Me vestia de alguns trapos. Não havia luxo algum. Minha família, apesar de tudo, da pobreza, do preconceito sofrido, da falta de uma perspectiva melhor, era feliz. Nos mudamos para o sul, na verdade, para o sudeste. Chamavam-nos de cabeça chata. Riam do nosso jeito de falar. A fuga da miséria pouco melhorou nossa já difícil situação.
Meu pai era meu herói. Pouco estudo, mas muita inteligência, de quem desde cedo teve de sustentar seus irmãos. Eu era o irmão mais velho, e falharia nesta missão. As contas se acumularam, e o pouco que meu pai ganhava não era suficiente. Meus irmãos mais novos precisavam de leite, mas não havia nem água. Eu precisava de escola. Meu pai fazia questão, mas eu não conseguia ver como a escola providenciaria comida. Algumas vezes me deixavam levar os restos da merenda pra casa.
Minha mãe era uma pessoa temente a Deus. Jamais permitiu que a família esquecesse de agradecer a Deus pelo que tínhamos. Não tínhamos quase nada. O que ela diria se soubesse que eu amaldiçoei a Deus tempos depois. A crença em Deus em nada melhorava nossa existência.
Quando eu tinha treze anos, meu pai ficou muito doente. Deus nada fez. Acredito que nem mesmo o Diabo. A doença o levou. A carga do mundo caiu sobre mim. Ele foi claro ao dizer pra mim, em seu leito de morte, que a vida não seria fácil. E de fato não foi.
Quando não podia ficar pior, um ano depois, uma forte chuva inundou a favela onde morávamos. Perdemos o pouco que tínhamos. Outro ano se passou e minha irmã mais nova desapareceu. Mais um ano e minha mãe também adoeceu. Nos últimos momentos de vida, ela já não falava tanto de Deus. No dia em que ela morreu, meu irmão caçula foi visto pela última vez.
Fui preso por roubar comida de supermercado chique. Estava orfão. Não tinha casa. Não tinha irmãos, sabe-se lá onde minha irmã e meu irmão andavam. Conheci um centro de reabilitação. Trabalhei como escravo para o Estado. Várias vezes me senti invisível. Eu era moreno escuro, cabeça chata, pobre. Quando fiz dezoito anos, tive minha liberdade.
Livre, pelas ruas do sudeste, pela grande metrópole moderna. Me sentei na escadaria de uma igreja. Só lembro do barulho. Não senti dor. Apenas vi o sangue escorrendo. E antes de tudo virar escuridão, lembrei das palavras duras e reais de meu sábio pai.
Prazer, meu nome era João Ninguém, ou Marvin, ou apenas retalhos. Esta foi minha nobre existência inútil neste mundo.
OBS: A canção “Marvin” foi gravada em 1988 pelos Titãs, sendo a mesma uma versão da original “Patches” composta por Dunbar e Johnson, interpretada pela banda Chairmen of The Board e também por Clarence Carter em 1970.
“Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,
já não se adoçará junto a ti a minha dor.
Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.
Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.
Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.
Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.
...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.”
já não se adoçará junto a ti a minha dor.
Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.
Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.
Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.
Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.
...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.”
Pablo Neruda
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