quarta-feira, 28 de março de 2012

A velha contrabandista

A Velha Contrabandista
(Stanislaw Ponte Preta)
 
"Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

- É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?

- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.

- Juro - respondeu o fiscal.

- É lambreta."
Stanislaw Ponte Preta

 Veja neste blog o conto Urubus e Sabiás de Rubem Alves


domingo, 25 de março de 2012

A globalização segundo Gilberto Gil

De Saveiro leva uma Encarnação
Antes mundo era pequeno/Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande/Porque Terra é pequena

Gil não está dizendo que o mundo mudou de tamanho. O que ele faz é uma analogia entre as distâncias que o ser humano podia percorrer antes do grande avanço dos meios de transporte. O mundo neste caso refere-se ao pequeno recorte de espaço geográfico onde vivia uma comunidade, que não podia ir longe demais, já que o planeta é imenso. Hoje os meios de transporte atingiram um nível de tecnologia onde somos capazes de percorrer grandes distâncias em pouco tempo, como se a imensidão da Terra não fosse algo tão intransponível.

Porque Terra é pequena/Do tamanho da antena/Parabolicamará
Ê volta do mundo, câmara/Ê, ê, mundo dá volta, camará

Além dos meios de transporte, Gil obviamente está falando também sobre o grande avanço dos meios de comunicação, usando a antena parabólica como símbolo da integração das culturas. O termo camará, anexado na parabólica, mistura a modernidade com a tradição da capoeira, talvez fazendo alusão ao fato de que tal desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação não beneficiou todos. Mas esta é só uma das várias interpretações.

Antes longe era distante/Perto só quando dava
Quando muito ali defronte/E o horizonte acabava

A globalização encurtou simbolicamente as distâncias físicas, o horizonte não é mais o limite da imaginação. O interessante é que o avanço dos meios de comunicação não necessariamente fez com que as pessoas percorressem o mundo fisicamente. Muitas das viagens são feitas via parabólica, via internet, via telefone celular.

De jangada leva uma eternidade/De saveiro leva uma encarnação
De avião o tempo de uma saudade
Pela onda luminosa/Leva o tempo de um raio
Esse tempo nunca passa/Não é de ontem nem de hoje
Mora no som da cabaça/Nem tá preso nem foge
Esse tempo não tem rédea/Vem nas asas do vento

Nestes versos Gil brinca com a relatividade do tempo. Não podemos controlá-lo, é ele quem dita o nosso ritmo neste mundo globalizado. As medidas de tempo que ele utiliza são abstratas: quanto vale uma eternidade? O que significa uma encarnação?
Como se mede uma saudade?

O momento da tragédia/Chico Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino

Apesar de todo o avanço tecnológico da globalização, a natureza do ser humano é frágil. Nestes versos ele cita as personagens da música “A jangada voltou só” de Dorival Caymmi. Talvez por isso diz que uma jornada de jangada leva uma eternidade. Já o saveiro, uma embarcação mais rápida, mas também rudimentar, o tempo é medido numa encarnação, que supostamente é menor que uma eternidade. (Esta frase parece bem o papo do Gilberto Gil mesmo!) Mas o que é a onda luminosa? Provavelmente ele quis falar da velocidade da luz, do inimaginável, do que o futuro dos avanços tecnológicos nos reserva.
Será que a Terra ainda pode ficar menor?

Veja neste blog outro post sobre Músicas

quinta-feira, 22 de março de 2012

Atestado de óbito de Marvin Patches


Releitura da música “Marvin” (Titãs)
Nasci e cresci no Nordeste brasileiro. Me vestia de alguns trapos. Não havia luxo algum. Minha família, apesar de tudo, da pobreza, do preconceito sofrido, da falta de uma perspectiva melhor, era feliz. Nos mudamos para o sul, na verdade, para o sudeste. Chamavam-nos de cabeça chata. Riam do nosso jeito de falar. A fuga da miséria pouco melhorou nossa já difícil situação.
Meu pai era meu herói. Pouco estudo, mas muita inteligência, de quem desde cedo teve de sustentar seus irmãos. Eu era o irmão mais velho, e falharia nesta missão. As contas se acumularam, e o pouco que meu pai ganhava não era suficiente. Meus irmãos mais novos precisavam de leite, mas não havia nem água. Eu precisava de escola. Meu pai fazia questão, mas eu não conseguia ver como a escola providenciaria comida. Algumas vezes me deixavam levar os restos da merenda pra casa.
Minha mãe era uma pessoa temente a Deus. Jamais permitiu que a família esquecesse de agradecer a Deus pelo que tínhamos. Não tínhamos quase nada. O que ela diria se soubesse que eu amaldiçoei a Deus tempos depois. A crença em Deus em nada melhorava nossa existência.
Quando eu tinha treze anos, meu pai ficou muito doente. Deus nada fez. Acredito que nem mesmo o Diabo. A doença o levou. A carga do mundo caiu sobre mim. Ele foi claro ao dizer pra mim, em seu leito de morte, que a vida não seria fácil. E de fato não foi.
Quando não podia ficar pior, um ano depois, uma forte chuva inundou a favela onde morávamos. Perdemos o pouco que tínhamos. Outro ano se passou e minha irmã mais nova desapareceu. Mais um ano e minha mãe também adoeceu. Nos últimos momentos de vida, ela já não falava tanto de Deus. No dia em que ela morreu, meu irmão caçula foi visto pela última vez.
Fui preso por roubar comida de supermercado chique. Estava orfão. Não tinha casa. Não tinha irmãos, sabe-se lá onde minha irmã e meu irmão andavam. Conheci um centro de reabilitação. Trabalhei como escravo para o Estado. Várias vezes me senti invisível. Eu era moreno escuro, cabeça chata, pobre. Quando fiz dezoito anos, tive minha liberdade.
Livre, pelas ruas do sudeste, pela grande metrópole moderna. Me sentei na escadaria de uma igreja. Só lembro do barulho. Não senti dor. Apenas vi o sangue escorrendo. E antes de tudo virar escuridão, lembrei das palavras duras e reais de meu sábio pai.
Prazer, meu nome era João Ninguém, ou Marvin, ou apenas retalhos. Esta foi minha nobre existência inútil neste mundo.
OBS: A canção “Marvin” foi gravada em 1988 pelos Titãs, sendo a mesma uma versão da original “Patches” composta por Dunbar e Johnson, interpretada pela banda Chairmen of The Board e também por Clarence Carter em 1970.
 
Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,
já não se adoçará junto a ti a minha dor.
Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.
Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.
Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.
Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.
...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.”
Pablo Neruda
   

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Norte-americano, estadunidense ou americano?

É muito comum, quando nos referimos aos Estados Unidos da América (EUA), confundir os termos americano, norte-americano e estadunidense. Qual é o mais correto?
Senão vejamos: na escola, em vários livros didáticos, o termo estadunidense reina soberano. A desculpa para usar este termo horrível, é o fato de que todos os habitantes do Continente Americano, são americanos, e não apenas os que nascem nos EUA. Mas não há nada de errado em usar este termo.
O termo norte-americano é usado para se referir aos Estados Unidos da América do Norte, mas isto é uma aberração, já que o nome do país não é este, ele se chama simplesmente United States of America (USA), e não U.S. North America.
A mídia já deixou claro que prefere os termos norte-americano e americano. O termo americano foi amplamente difundido nos filmes, onde fica claro, que eles se referem ao próprio país como simplesmente América. Isto faz o maior sentido, pois o Brasil já foi chamado de Estados Unidos do Brasil, e atualmente o Estado brasileiro é conhecido como República Federativa do Brasil. Nós somos brasileiros, e não “republicafederativenses”. Portanto, não tem nada de mais em se referir ao que é dos EUA como americano.
Estas discussões surgem geralmente entre os que escolheram odiar o que vem dos EUA. Eu particularmente já fui um “esquerdalóide anti-EUA”, mas deixei esta bobagem de lado. Gregos, romanos, britânicos e hoje os americanos. Alguém sempre domina o mundo. Outra bobagem é chamá-los pejorativamente de imperialistas. Não que eles não sejam, mas parece que o Brasil é um santo imaculado entre os países, um injustiçado, quando na verdade, é o grande imperialista da América do Sul. Somos uma espécie de “primo pobre invejoso”.
Mas se você prefere destilar seu ódio aos “estadunidenses norte-americanos”, curta a música Amerika, da banda alemã Rammstein.
PS: Eu não disse que o termo estadunidense é errado, só disse que ele é estranho. Também não disse que o termo norte-americano é errado, mas ele não designa nacionalidade, apenas uma região, formada por México, EUA e Canadá. E não disse que concordo com a política internacional do governo americano, apenas acho ridículo este “ódio bobinho” contra o povo dos EUA.
 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Crônica do Subdesenvolvido

Eu já fui rico. Na verdade eu não sabia que era rico, pois não conhecia a pobreza. Eu era livre, mas também não tinha ideia do que era a liberdade, pois não conhecia o que era a colonização.
Então fui apresentado à exploração. Com tempo eu subsidiei e financiei uma tal de revolução industrial. Travaram-se guerras sangrentas pela minha riqueza. Dominação econômica, tecnológica, colonial e neocolonial; tantas palavras estranhas!
Depois de um tempo eu virei alguém com independência política. Ah! A liberdade. Mas, afirmaram que eu pertencia a um outro mundo, um tal de terceiro. Passaram algumas décadas e decidiram que este não era um nome apropriado para o meu mundo.
Diagnosticaram uma doença chamada de economia primário- exportadora. Mas pelo menos eu era independente. Pouco importa minha dívida impagável, pois pra me curar do mal que me fizeram, cobraram juros pesados, mas sou independente.
Não apenas independente, mas analfabeto e doente. Sou inchado, cheio de gente, desempregado, subempregado. E a culpa, pasmem, é minha! Arrumaram-me um programa de recuperação, como era o nome mesmo, ah, lembrei, neoliberalismo. Mas fiquei incrivelmente pior.
Poxa, desculpe aí, não me apresentei. Meu nome? Nem sei. Agora me chamam de PAÍS SUBDESENVOLVIDO.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Navegar no esgoto da "infovia"

Sim, navegar é preciso! Desbravar o mar do conhecimento ajuda ao ser humano fugir do conformismo. O conformismo elimina a curiosidade, pois as respostas para os conformados estarão prontas. Respostas prontas e diretas para perguntas desafiadoras é um grande estímulo à preguiça mental. A mediocridade é a regra da vez. A mídia pensa pelos medíocres.
A reprodução de conhecimento inútil invadiu a infovia. Por isso, mesmo para os conformados, navegar é preciso. A pobreza mental é tão grande, que os indivíduos multiconectados adquiriram uma dependência crônica de indignações inúteis e fúteis.
Que a bússola da inquietude dos que fogem da mediocridade guie à redescoberta da dúvida. Mas neste barco, nem todos querem navegar.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Afinal, somos um Pais ou um Estado-Naçao?


País, Estado, Nação e Estado-Nação


Estes são conceitos que se confundem, suas explicações são quase abstratas. Mas é possível, simplificando, compreender o que cada um representa. Uma parte da confusão se deve ao fato de, no Brasil, utilizarem tais conceitos geopolíticos como sinônimos. Pois vamos tentar:
País: podemos reduzir a informação, dizendo que se trata do território onde vive um povo, governado por um poder instituído, com características naturais e humanas em comum.
Estado: entendemos como Estado, a representação política que exerce um poder soberano sobre um determinado território e as pessoas que nele vivem.
Nação: um grupo de pessoas com alguma(s) característica(s) em comum.
Estado-Nação: sendo bem reducionista, é o conjunto de governantes e governados que vivem num país, ou seja, um território instituído por lei, delimitado por fronteiras, com autonomia política e adminstrativa.
Podemos dizer, portanto que somos a nação brasileira, que vive num país da América do Sul, cujo Estado é presidencialista. Somos, portanto um Estado-Nação. Mas existem diversas nações que não possuem um país, como os curdos, os ciganos e os tibetanos. Também existem países que não são considerados Estado-Nação, como Inglaterra, Escócia e País de Gales.
Outra confusão muito comum no estudo das questões geopolíticas é a diferença entre região e território. A região é uma parte do espaço geográfico com alguma característica (vegetação, clima, relevo, posição geográfica, etc.) em comum. Para que uma região seja um território deve haver uma lei que delimita uma área, que será adminstrada de forma soberana por um poder instituído. A grosso modo, pode-se afirmar que todo território é uma região, mas nem toda região é um território.
Este assunto parece difícil, e é mesmo! Mas com o tempo você poderá aprender a usar cada termo dentro do contexto correto, e não cometer gafes, como fazem muitos jornalistas desinformados.